POEMA-PRÁXIS (MANIFESTO DIDÁTICO)
Manifesto de Mário Chamie põe como posfácio de seu livro de poemas Lavra-Lavra, de 1962. Mas o texto está datado de 1961.
Publicamos apenas os trechos que nos parecem mais importantes para a compreensão do poema ou da chamada poesia-práxis.
Texto extraído do livro:
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia & Modernismo brasileiro. Apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 21ª. edição. Rio de Janeiro: José Olimpio, 2022. 658 p. ISBN 978-85-5547-069-4 Ex. bibl. Antonio Miranda
(Trechos)
1) Lavra-Lavra lança e instaura o poema-praxis.
2) Que é poema-práxis?´É o que organiza e monta, esteticamente, uma realidade situada, segundo três condições de ação: a) o ato de compor; b) a área de levantamento da composição; c) o ato de consumir.
3) Ato de compor.
O poema-práxis tem seu primeiro momento no projeto semântico; ele é consciência constituinte e constituída porque, nesta condição, é autônomo e independente ainda da área de levantamento. Muitos poetas ficaram no ato de compor e nele se alienam. Mallarmé é o líder. A consciência constituinte e constituída estabelece os meios de existência e poema: o seu modo de ser. Lavra-Lavra estabelece, nessa primeira condição, o seu modo, selecionando e equacionando os elementos fundamentais do projeto. São os seguintes: espaço preto, mobilidade intercomunicante das palavras e suporte interno de significados. Para que o leitor não se perca, definirei (exemplificando) cada um dos elementos.
Comecemos pelo espaço em preto. Sabemos que toda palavra é um signo unívoco, enquanto não projetamos sobre ela as intenções significativas de determinado contexto ou situação. A palavra casa, por exemplo, se pronunciada numa situação de compra e venda, receberá uma carga intencional própria a esse contexto. Isto diz que, em potencial, toda palavra é equívoca ou multívoca; que toda palavra pode ter tantos significados quantos sejam os seus contextos.
Acontece, porém, que as palavras não são corpos inertes mobilizados a critério de quem as profere e as usa. Semelhante entendimento está na base da crise da poesia de hoje. As palavras são corpos vivos. Não vítimas passivas dos contextos. Desse estado de vítimas que as leva ao equívoco e à diluição, elas se defendem sozinhas. E o seu campo de defesa é, exatamente, o poema. Não pretendemos dizer que a palavra não deva ser multívoca; o que afirmamos é que sua multivocalidade deve ser realizada ano seu espaço próprio de autonomia. Esse espaço próprio é o poema — campo de defesa.
Assim, no projeto semântico do poema, a palavra se abriga em seu espaço e se defende da interferência diluidora das situações externas. É no poema que ela — considerada em si mesma — se revela um signo unívoco. E é no poema que ela cria a sua mutivocalidade, graças às relações contadas que se estabelece com as copartícipes na construção de um só espaço em preto. Este,
portanto, é o campo de defesa construído com existência, estrutura e fisionomia próprias, pela vida autônoma das palavras e suas relações específicas.
Para o leitor ter uma ideia localizada no campo de defesa que é
o espaço em preto e de como, nele, uma palavra se faz unívoca e dita o seu fluxo multívoco, tomemos, ao acaso, o poema “Compra e Venda II”. Mais: tomemos, ao acaso, a palavra produto, situada na segunda unidade de composição do primeiro bloco. Se o leitor não projetar, de imediato, suas intenções de contexto sobre produto, ele
terá o seguinte: isolada, produto é um signo unívoco idêntico a si mesmo, tal qual uma rosa é uma rosa e não outra coisa; colocada,
porém, no espaço em preto, ela passa a ditar a sua multivalência,
suas relações de campo com as copartícipes. De que maneira? Pelo
processo de extroverter as suas imanências. Ou melhor: pelo que,
simplesmente, chamaremos de processo das imanências explícitas.
Assim, levando em conta todos os outros bloco do poema e a posição
geométrica que a palavra produto ocupa no espaço em preto, iremos
destacando as suas copartícipes de posição ao longo do campo de
defesa. Destacaremos, então na segunda unidade do segundo bloco,
a palavra dinheiro; na terceira do terceiro bloco, a palavra proposta e, na quarta, do quarto, a palavra celeiro. Não preciso esclarecer que
dinheiro, no contexto autônomo do poema, é a imanência explícita de
produto; que proposta é a imanência explícita de dinheiro; e que celeiro —numa questão de compra e venda de cereais — é a imanência explícita de proposta. A existência, a estrutura e a fisionomia do espaço em reto permitem o desdobramento desse processo, a partir de qualquer palavras (ou unidade de composição) em qualquer campo de defesa do livro Lavra-Lavra.
Vejamos, agora, a mobilidade intercomunicante. Direi que, sem o entendimento dessa mobilidade, o poema pode tornar-se um campo de defesa fechado ao leitor. Torna-se hermético. Direi que essa mobilidade que circunscreve a dialética interna das palavras isoladas e das palavras incorporadas no espaço em preto. Eis o fluxo da dialética interna: a palavra isolada é unívoca; em conotação com outras copartícipes é multívoca; e integradas, umas e outras, num mesmo campo formam uma totalidade unívoca novamente. Nesse
ponto, coincidimos com Mallarmé: um poema é uma palavra total. O leitor que desejar fazer uma leitura crítica de Lavra-Lavra deverá seguir o fluxo:
palavra unívoca palavra multívoca palavra unívoca
(isolada) (em construção) (o poema)
4) Área de levantamento de composição.
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Pois bem. A área de levantamento da composição é, para nós, uma
realidade escolhida: a situação do homem no campo (rural). Esta é
para nós, a realidade posta e exposta no mundo sensível que Lavra-
Lavra levanta. Sobre ela agimos em favor dos valores humanos nela
inseridos; e dela também recebemos a ação. Em outros termos: agimos e somos acionados pela área de levantamento. Uma vez, somos nós que nos entrosamos com a situação do homem do campo;
outra vez, somo entrosados nela; e desse jogo dialético saímos comprometidos com o nosso próprio sistema válido de participação. Só com essa repetição mútua do entrosamento é que um poeta, fora da situação do homem do campo, pode falar desse homem e só, assim, pode esse homem aceitar e se ver, no nível de sua consciência, naquilo que dele o poeta diz.
5) Ato de consumir.
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O ato de consumir é, para nós, o ato da leitura no nível da consciência dos leitores. Não significa que devamos escrever para o leitor segundo a sua educação e o seu alcance intelectual, numa sociedade de privilégios. Não se trata disso. Trata-se de atender ao modo de ser dessa consciência projetada em dada situação. Qual é, hoje, esse modo de ser? É a realidade. E o que é a utilidade para essa consciência? É tudo aquilo que ela pode usar e auferir ao nível dos seus fins.
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6) A história dos movimentos literários mostra que a literatura exibe uma sucessão estatística invariável: curvas com ponto-ápice superior e ponto-ápice inferior. Ponto-ápice superior: ativismo. Ponto-ápice inferior: maneirismo (em sentido pejorativo ou não). Exemplo imediato — ponto ápice superior: modernismo; ponto-ápice inferior:
concretismo. Nem sempre os pontos-ápice inferiores são movimentos maneirísticos; às vezes representam a simples defasagem final do ativismo de outro movimento.
7) A literatura-práxis instaura um ativismo permanente; uma transformação estatística variável, antiarquológica. O ativismo de um poema-práxis o define: usado (consumido) é sempre o mesmo desencadeando novos usos. Mantém-se e se supera mantendo-se.
8) Poema- práxis: fusão totalizada do ato de compor, da área de levantamento da composição e do ato de consumir. Instrumento que constrói. Poesia-produção.
9) Poema-práxis: a única totalização válida e não alienada da consciência poética contemporânea.
10) A filosofia do cinema, diz 1. Epstein, é uma antifilosofia — porque, acrescentamos, não imobiliza conceitos. A literatura-práxis
é uma alternativa literária. Como o cinema, ela cria um presente virtual, uma pennamência livre da negatividade permanente. “Cinema
is “like” dream in the mode of presentation; ito creates a viritual presente, na order o direct apparition” (S. Langer). O presente virtual (dinamismo lateten do poema-práxis) faz de um dado-feito uma continuidade repetida. Ao Contrário das soluções-contribuições literárias (imobilização de princípios diretores preexistentes), Lavra-
Lavra é um livro de repetição.
11) Plataforma-síntese: a) a literatura-práxis recoloca a palavra no centro de uma tríplice e virtual função semiótica — semântica, sintática e pragmática; b) a arte como objeto e argumento de uso;
c) a práxis só se concebe em termos de obra e nunca de experiência de comprovação; d) a práxis é dado-feito presente e admite a teoria como ponto de passagem para outros dados-feitos, e) cada dado-feito, enquanto práxis, projeta princípios originais de semântica, pragmática e sintaxe; f) não há um corpo ou um complexo de princípios estáticos de semiótica de que deva depender um dado-feito; g) existe mediação entre dados-feitos, sem que atuem sob modelos gerais; h) é exemplo de modelo geral o gestaltismo que transforma a estrutura em conteúdo e não em campo de defesa de significados móveis, intercomunicantes e de uso (o problema permanece ainda que o poema concreto passe para a frase da “concreção da composição” — la fetichisation a pour résultat de réaliser de fetiches (Sartre); i) a literatura práxis não é empírica, irracional ou indiscriminada; é consciente e, por via da consciência, será praticada, pois se um poema-práxis é um campo de defesa de valores da palavra, a literatura-práxis é o campo geral de defesa dos valores humanos contra a alienação de uma sociedade que necessita transformar-se para conquistar-se.
Outubro de 1961
MÁRIO CHAMIE.
(Lavra-Lavra, São Paulo:
Massao Ohno, 1962).
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